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MERGULHO NOTURNO (Crônica de Ricardo Zani)
Noite solitária, meio vazia, dessas ocasiões preferidas pelos pensamentos distantes, quando querem ressurgir das sombras ou do silêncio, sem avisos nem motivos.
É o que parece acontecer com ele. Movido por essas sensações, caminha indeciso até um canto da casa, onde existe um pequeno armário. A peça de madeira está onde sempre esteve, discreta, há uns tempos esquecida. Hesitando, pergunta a si mesmo se há algo diferente com que se ocupar, mas as emoções se antecipam, ameaçando arrombar o móvel à sua frente.
Ele se conhece bem. Sabe que, se abrir o armário, mergulhará em algo que o engolirá por horas. Nesse caso, sua noite já não estará vazia, mas não sabe como ela poderá terminar.
Delicadamente, gira a chave do armário e retira um dos pequenos volumes ali guardados, abrindo-o com cuidado. Então, acomoda-se e respira fundo. Perde a noção de quanto tempo se passa, embalado por tantas sensações. Logo, quer abrir o segundo... E aos poucos vai-se vendo numa rota emocionante.
Mal termina o segundo e bate a vontade de partir para o próximo. Como chegou até ali, vai em frente. Acontece que, dessa vez, o efeito parece mais forte. O terceiro realmente é diferente e o leva por caminhos e emoções pouco comuns.
O que há de diferente nesse último? Ele tem nas mãos o terceiro álbum de fotos de uma das coleções que guarda como um tesouro. Dezenas, quase todas antigas. Detém-se em uma delas, a mais velha do conjunto. Preto e branco, com décadas de idade, mas em boa conservação.
Uma sensação de surpresa inunda suas lembranças. Há muito tempo se esquecera dela e não esperava encontrá-la naquele contexto nostálgico. Talvez por isso, agora parece vê-la pela primeira vez.
Natural sentir saudade quando a gente se entrega às recordações que as imagens antigas nos trazem. Mas nesse caso há algo diferente. Não é propriamente saudade, já que nessa foto só ele aparece, aberto num doce sorriso, na pose ingênua e franca dos quatro ou cinco anos de idade. É que aquela visão inspira um carinho que vai além da imagem em si.
Olhando para a fotografia, ele vê quem nela não está. Pessoas que num certo momento de suas vidas incertas deixaram de lado os ganhos e perdas, as idas e vindas, e fizeram algo para compor uma cena de ternura que, sem se darem conta, legariam às emoções distantes de uma era impensável. Percebe que revive um sentimento forte por quem cuidou do menino em tempos frágeis, difíceis, mas palmilhados com afeto.
A emoção aperta a garganta ao pensar nas pessoas que se esmeravam em deixá-lo assim como na foto: arrumadinho, bem penteado, sapatinhos brilhando, roupa alinhadinha...
Lembranças, as melhores lembranças, de quem conseguia provocar-lhe um sorriso puro e sincero. A doçura de quem o afagava, o carinho de quem lhe dava colo, a proteção de quem o levava pelas mãos, o valor de quem lhe mostrava caminhos e atalhos.
Segue por longos minutos imerso na imagem cinzenta dentro do álbum, até que finalmente cai em si e retorna ao presente. Aí ele se dá conta da maravilha que é, ainda hoje, ver e abraçar pessoas que desde o inocente preto e branco do árduo passado davam-se àqueles cuidados.
Mas o momento atual também balança nas dúvidas sobre a justa gratidão devida a essas pessoas e soluça nas dores por quem aqui já não vive, a não ser nas lembranças que a memória infantil capturou para guardar por toda a vida.
Muito além das imagens, porém, com a foto revive a doce noção de fazer parte de um lar, naturalmente sem luxo, construído com mais sentimento do que acabamento. E devolve o conforto humano de pessoas que lhe dedicaram muito de si, sem nada esperar em troca. Exceto expressões de ternura como a que se mantém viva e verdadeira no papel envelhecido.
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