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13 fevereiro 2007

CONTO X CRÔNICA

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Ao concluir um texto, na hora de colocá-lo à disposição dos leitores tenho de decidir em qual seção será postado. Dependendo do gênero, devo escolher: seção de contos ou crônicas? Confesso que, às vezes, fico em dúvida. Coço a cabeça e releio o que escrevi. É sério! Essa classificação às vezes não é tão clara, até mesmo para o autor.

Antes de seguir, uma ressalva necessária: embora a crônica tenha estreita relação com jornalismo, penso que possa ficar fora dessa análise a crônica tipicamente jornalística, elaborada para leitor de jornal, pois ela está sujeita a linguagens, formatos e padrões bem específicos . O que eu gostaria de focar é o texto pela ótica mais literária, aquele texto destinado a leitor de livros.

Voltando à questão original, é preciso lembrar que já se fez muita confusão em torno disso. Tanto que Ignácio de Loyola Brandão escreveu, no jornal O Estado de São Paulo:


uma vez, nos anos 80, Analdino Paulino coordenou uma edição de crônicas de amor para um livro que seria brinde da Credicard. Convidou dez autores, eu entre eles. Escrevi a minha. Foi devolvida pelo então diretor de marketing do cartão de crédito. "Estava ruim?" Não, disse o coordenador. Estava boa, ele até gostou. "E por que recusou?" Porque ele pediu crônica e você mandou um conto. "Ah, e o que é conto e o que é crônica para ele?" A resposta serviu para os milhares de teóricos que queimam cabeça. Porque, disse o marketeiro culto, uma crônica não tem diálogos. E como a sua tem, é conto.

A ironia de Ignácio de Loyola, nessa historinha, mostra bem como são pouco conhecidas as características que realmente diferenciam um gênero do outro. Mas pouco ajuda para compreendê-las.

A verdade é que na literatura muito se fala de romance, poesia e conto. A crônica, como estilo, teve bons momentos nos anos 50 e 60, mas caiu para segundo plano. Só agora, com os espaços na internet, blogs e fotoblogs, aparecem os cronistas virtuais e a crônica ressurge.

Mas, voltando às características que ajudam a distinguir conto de crônica, resolvi ir um pouco mais longe. Fui buscar na fertilidade e riqueza do site Anjos de Prata (sim, esse Prata é de Mário Prata), uma pequena lição que pode reduzir as dúvidas sobre o que é conto e o que é crônica. Desde já, recomendo que não se espantem com opiniões radicais como a de Rubem Braga... Acontece que o quadro é tão rico em informações quanto em controvérsias. Mas muito grande para ser reproduzido aqui. Por isso, abro o link para o acesso: clique aqui para abrir.

Agora, para quem quer mais (ou quando aquele site estiver temporariamente indisponível), recomendo a leitura saborosa de Nelson de Olivera, colunista de Rascunho (que se autodenomina o jornal de literatura do Brasil):


Falar sobre a literatura de qualidade é muito mais fácil do que produzir literatura de qualidade. Aliás, parece verdadeira a crença de que é mais fácil discorrer criticamente sobre a boa prosa e a boa poesia do que produzir boa prosa e boa poesia (vem daí a famosa provocação que garante que todo crítico é a sublimação mal costurada do escritor frustrado que habita seu corpo). Há também momentos em que falar sobre o conto e sobre a prosa de ficção em geral é a mesmíssima coisa. Não fiquem espantados, isso vai ocorrer bastante nos próximos parágrafos.

Na prosa, o modernismo literário, buscando a originalidade e fugindo da tradição, deu à luz mil filosofias diferentes de composição, que por sua vez pariram uma imensa variedade de contos, novelas e romances. As múltiplas possibilidades técnicas e estruturais que cada gênero narrativo tem a oferecer desmontam todas as definições clássicas (de Aristóteles aos teóricos contemporâneos) e põe à disposição do escritor infinitos caminhos criativos. Dada essa multiplicidade de modos de composição, a definição contemporânea de conto, novela e romance, para não deixar escapar as narrativas mais avessas a definições, tornou-se bastante elástica. É claro que tal flexibilidade não é exclusiva da literatura, ela deriva da superflexibilidade que nos últimos dois séculos encampou todas as áreas do conhecimento humano.

Por exemplo: que é o conto? Qual a diferença entre o conto, a crônica, a novela e o romance?Edgar Allan Poe baseava sua teoria do conto na relação entre a extensão da narrativa e o efeito (inquietação, medo, dúvida, encantamento, excitação, perplexidade ou qualquer outro) que o autor deseja que a fruição da narrativa provoque no leitor. Para o escritor norte-americano (anos mais tarde, Anton Tchekhov também adotou esse princípio), o conto só produzirá esse efeito único e fulminante, essa impressão total, se for apreendido de uma só assentada e mantiver o leitor sempre em suspense. Por isso, para exercer o domínio sobre o leitor, o conto não deve exigir mais do que duas horas de leitura atenta. Poe estendeu também ao poema sua filosofia da composição baseada no perfeito e explosivo casamento da extensão do texto com o efeito literário pretendido.

Vladimir Propp, por outro lado, não se preocupava com a extensão da narrativa. Ele alicerçou sua rigorosa definição do conto folclórico russo, intitulada Morfologia do conto maravilhoso (1928), na análise cuidadosa das diferentes ações das personagens. A descrição estruturalista de Propp se baseia nas 31 ações constantes (ele as chama de funções) que as diferentes categorias de personagens (sete no total) podem executar ao longo da narrativa. Apesar de considerar apenas o conto popular, de estrutura simples, o sistema de Propp foi posteriormente ampliado pelos seus seguidores europeus para abarcar também o conto literário, muito mais complexo. Porém o altíssimo número de funções nos contos modernos e nos contemporâneos, o desdobramento do caos em tantas ações graúdas e miúdas, em tantas categorias de personagens e de narradores, tudo isso inviabiliza a classificação segundo determinados padrões estruturais.

Ricardo Piglia, incrementando a teoria do iceberg de Ernest Hemingway (o contista talentoso é sempre econômico: seu narrador revela muito pouco, deixando os fatos mais importantes apenas subentendidos), nas suas duas teses sobre o conto também mantém o foco no enredo: para ele todo conto sempre narra duas histórias, uma história visível (a ponta do iceberg) e uma secreta (o imenso corpo submerso do iceberg), narrada de forma elíptica e fragmentária. Para Piglia, o talento do contista está em entrelaçar ambas as histórias, de maneira que só no desenlace seja revelada, de modo surpreendente, a história que se construiu abaixo da superfície em que a primeira veio se desenrolando.

As muitas definições e teorias do conto, amadurecidas por gente como Poe, Tchekhov, Propp, Hemingway, Piglia e tantos outros, por serem detalhistas demais, sempre deixam escapar por entre os dedos bons espécimes. Pouco tem a dizer, por exemplo, sobre o miniconto e o microconto, formas brevíssimas muito praticadas nas últimas décadas. Pouco tem a dizer sobre as novas modalidades de conto, muito distantes de sua forma simples (o conto maravilhoso, transmitido oralmente de geração a geração) e de sua forma modernista (a produção dos contistas citados e também a de Kafka, Cortázar e Guimarães Rosa): o conto em forma de mosaico, feito de recortes de jornais, revistas e livros; o conto minimalista; o conto confessional em espiral, que usa largamente o fluxo de consciência; o conto produzido com os elementos até então só encontrados em poemas, como as assonâncias, as rimas internas e os jogos sutis de linguagem.

A confusão acontece também com as muitas definições e teorias da crônica, da novela e do romance, para ficarmos apenas na prosa. Novamente para diminuir a angústia do diletante e estabelecer as coordenadas mínimas e o repertório básico que permitirão que todos falem a mesma língua, eu voltei do monte Sinai com mais essa tábua de definições:
A diferença entre o conto e a crônica é de natureza, não é de extensão.


A diferença entre o conto, de um lado, e a novela e o romance, de outro, não é de natureza, é de extensão.

A diferença entre a novela e o romance não é de extensão, é de natureza.
Hoje o que diferencia o conto da crônica é a densidade poética.


O conto é pesado, a crônica é leve. O conto deve provocar e inquietar, a crônica deve entreter e deleitar. A crônica é a prosa curta, amena e coloquial, com toques de malícia e humor, sobre os fatos políticos da atualidade ou sobre os hábitos e costumes dos diversos segmentos sociais. O conto é todo o resto, é toda a prosa curta que não é crônica.

Hoje o que diferencia o conto da novela e do romance é principalmente a extensão: o conto é curto, a novela e o romance são longos. O que diferencia a novela do romance é basicamente o número e a disposição das unidades dramáticas: na novela há a sucessão cronológica, em linha reta, de várias unidades dramáticas, sucessão que pode ser prolongada indefinidamente (grosso modo, é como se a narrativa fosse feita de vários contos ligados pela permanência das mesmas personagens). No romance há menor número de unidades dramáticas e todas estão interligadas, ou seja, as células dramáticas não surgem dispostas lado a lado, em linha reta, mas simultaneamente, como em certos móbiles em que cada esfera está ligada a todas as outras.
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2 comentários:

Anônimo disse...

Ufa!! esclareceu bem!! acabei de escrever um texto e nao sabia se era conto ou cronica. bem, eh conto mesmo!

VALEU!!

EDU disse...

Olá Ricardo,
Gostei do que escreveste sobre os diferentes tipos de texto. Eu estava em dúvida sobre a diferença sobre conto e crônica. Essa dúvida surgiu por que escrevi um texto que pensava ser crônica (meu jultamente não tinha critérios literários, eu simplesmente achava que era crônica), mas a minha professora disse que era conto.
A resposta está se esclarecendo aos poucos, obrigado pela tua contribuição!

Se desejares ver o meu conto, ele está em www.jornadear.com, na guia artigos/ narrativas de viagem.

Valeu
Eduardo